Canto do Leitor – Da inconfidência à libertação das Américas

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11/09/2013 - 03:01

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Foto: Bruno Magalhães

Enviado pelo leitor Fred Vidal

Time de preto, de favelado; mas quando joga, o Mineirão fica lotado. (canto entoado pela Massa Atleticana nas arquibancadas do Gigante da Pampulha, numa paródia à música Som de Preto, de Amilcka e Chocolate).

Belo Horizonte, 24 de julho de 2013. Ao baixar do crepúsculo, o tráfego se faz penoso. A região da Pampulha é invadida por um sem-número de carros; um exército inumerável de pessoas marcha pelas calçadas ou arrisca-se por entre os veículos, rumando na mesma direção. Homens, mulheres, jovens, velhos, crianças, negros, brancos, ricos e pobres carregam a mesma bandeira – um coração estilizado trazendo as iniciais C.A.M. –, vestem o mesmo uniforme – a camisa com listras em branco e preto – e, nos lábios, o mesmo grito, que lhes brota das vísceras: “Galo!”. No peito, a única certeza: “Eu acredito!”. Ainda que se desconheçam, ao se avistarem é como se, há mais de um século, partilhassem da mesma familiaridade, visto que acenam uns para os outros e saúdam-se com o grito comum, ou algumas variantes: “Galo doido!”, “Bica, Galão!”, “Vamos, meu Galo!”.

À medida que se aproximam do Mineirão, a Massa de transeuntes ganha ainda mais consistência. Pessoas, a pé, de carro ou em motos, vêm de todas as direções, cada uma com seu jeito de ser, mas carregando a mesma identidade, o mesmo fervor, a mesma alegria em fazer parte desse grupo. Pessoas que partilham de uma única paixão: o Atlético, ou Galo, como lhe chamam carinhosamente. Entretanto, não são meros torcedores. Há um quê que os diferencia das demais torcidas. Mas, que elemento é esse?

O jornalista e escritor Roberto Drummond (1933-2002), mesmo sendo Atleticano, mesmo fazendo parte dessa fanática legião, não compreendia a magia do espírito que movia a si mesmo e aos seus companheiros de torcida, e esforçava-se por desvendar tal enigma:

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Foto: Daniel Teobaldo (Soul Galo)

Ah, o que é ser atleticano? É uma doença? Doidivana paixão? Uma religião pagã? Bênção dos céus? É a sorte grande? (...) Que mistério tem o Atlético que, às vezes, parece que ele é gente? Que a gente associa às pessoas da família (pai, mãe, irmão, tio, primo)? Que a gente o confunde com a alegria que vem da mulher amada? Que mistério tem o Atlético que a gente confunde com uma religião? Que a gente sente vontade de rezar “Ave Atlético, cheio de graça?” Que a gente invoca como só invoca um santo de fé? Que mistério tem o Atlético que, à simples presença de sua camisa branca e preta, um milagre se opera? Que tudo se transfigura num mar branco e preto?

Torcedores em geral gostam de futebol. Assim acontece com torcedores do Cruzeiro, do Corinthians, do Flamengo, do Grêmio, do Internacional... Mas, para o Atleticano, o futebol em si parece ser o que menos importa. Aqueles que se declaram seguidores desse centenário clube de Minas parecem não dar a mínima para o esporte bretão se comparado ao seu amor pelo Galo, pelo que ele representa, pela sua identidade. Em mais de 105 anos de história, passam-se os anos, passam as pessoas, os seus costumes, suas ideias; passam crises econômicas, tormentas de toda espécie, conquistas gloriosas e decepções, campeonatos são criados e extintos; passam atletas eternizados e outros, medíocres, caem no esquecimento – mas a paixão do Atleticano não passa. Pelo contrário, ela parece estar num constante movimento ascendente, e como que se inflama de geração para geração, fenômeno que deixa os especialistas do assunto, a cada dia, mais espantados: qual o motivo dessa indescritível paixão? O que leva essas pessoas a manterem tamanha devoção a um clube que, em sua história recente, é carente de títulos de expressão? Não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva que explique esse fenômeno, mas penso que todo esse encanto tem sua raiz no instante primeiro da fundação do clube: uma travessura; ou melhor, uma inconfidência.

No dia 25 de março de 1908, dezenove estudantes decidiram matar aula. Era uma quarta-feira – sim, uma quarta como aquela de 24 de julho de 2013! – e um sol fulgurante aquecia as ruas da recém-fundada Belo Horizonte. Liderados por Margival Mendes Leal e Mário Toledo, o grupo de garotos se refugiou no coreto do Parque Municipal. O abandono das aulas naquele dia, porém, tinha um objetivo predeterminado: fundar um clube de futebol “para sufocar todos os outros” que, até então, existiam. “Todos os outros” eram clubes de futebol formados pela elite social da cidade, gente que, devido ao poder aquisitivo, tinha condições de bancar os gastos do tão falado “futebol”, um esporte coletivo que apareceu no Brasil trazido por um tal Charles Miller, que o conheceu na Inglaterra.

Os jovens da classe alta tinham as condições econômicas necessárias para importar artefatos caros e, àquela época, raríssimos em nosso país, como a bola, por exemplo, tal como uniformes e chuteiras para os jogadores. Não bastasse isso, havia uma cultura excludente, e as poucas agremiações existentes só aceitavam nos seus escalões a classe alta – como, por exemplo, estudantes ricos de medicina – e a raça branca. Mas aqueles jovens que se reuniram no coreto do Parque Municipal naquela quarta-feira ensolarada não tinham vez. Tinham origem humilde, suas famílias, se bem não eram as mais pobres, formavam a classe média da sociedade. Não eram aceitos nos círculos abastados e não tinham a condição econômica necessária para bancar o esporte. Entretanto, o desejo não lhes faltava. Queriam praticar o tão badalado futebol, sonhavam em fazer parte de um clube. Por isso, abriram mão de um dia de aula, reuniram-se e se comprometeram a empregar todos os seus esforços na construção daquela nova agremiação que, diferentemente das já existentes, não faria distinção de pessoas, mas estaria aberta a todos. Nascia assim o Athlético Mineiro Football Club. Cinco anos depois, no dia 25 de março de 1913, passaria a se chamar definitivamente Clube Atlético Mineiro.

A pequena associação despertou, desde o início, a simpatia de várias pessoas. As famílias dos estudantes, ao invés de castigá-los por faltarem à escola, apoiaram a ideia e se uniram aos seus objetivos. Dona Alice Neves, mãe de Mário Neves, um dos vinte e dois fundadores – após o primeiro encontro, onde estiveram dezenove estudantes, outros três tomaram parte no empreendimento e são igualmente considerados fundadores –, confeccionou o primeiro uniforme e a primeira bandeira do time. Além disso, ela tomou a frente e organizou uma torcida feminina composta principalmente pelas irmãs dos criadores do clube, a primeira torcida feminina do país. Ela ia de casa em casa, pedindo autorização aos pais e, desse modo, conseguiu reunir cerca de cinquenta moças. Houve, portanto, uma mobilização do povo comum em torno desse ideal. Para a aquisição da bola, por exemplo, foi necessária muita luta, muito sacrifício, pois o artefato teria de ser importado; não existia fabricação no Brasil, uma vez que o futebol, aqui, estava sendo descoberto. O pai de Vate (Margival), com muito esforço, deu uma bola de presente ao filho e à instituição. Mais tarde, outro fundador, Antunes Nunes Filho, conseguiu que lhe enviassem outra bola em troca de insetos que ele capturava e enviava a colecionadores da França. Sim, muita luta e sacrifício; mas muito amor. E, por isso, a valorização extrema de cada conquista, de cada vitória. O “clube dos meninos”, aos poucos, ia se tornando uma realidade, e dessa realidade todos faziam parte. Os garotos se reuniam num porão da casa onde morava o presidente do clube, Vate, na rua Goiás. Eles precisavam, agora, de um lugar onde pudessem praticar o esporte. Então, um vizinho próximo lhes doa um terreno baldio, lugar pequeno, para que, ali, eles pudessem jogar. Alguns colaboradores procuram a prefeitura e conseguem seis antigos postes de madeira, e com estes são feitas as traves. O Atlético tinha, então, o seu primeiro campo de futebol.

No momento nascente daquela cidade com vocação para as coisas grandes, as famílias dos meninos, os seus vizinhos, parentes próximos e amigos, enfim, toda a gente comum, começou a se mobilizar em torno de um mesmo ideal: ajudar o “time dos meninos” a crescer e ter condições de enfrentar os clubes já bem estruturados da classe alta. Qual não foi a surpresa e o arrebatamento quando o “time dos meninos”, já em sua primeira partida, derrotou o já respeitado Sport Club Football! Ora, perder para aquele grupo de garotos da classe média, que de modo tão imponderado resolveram fundar um clube de futebol, era algo inaceitável para os jogadores do Sport. Pediram a revanche, que os fez sair de campo com nova derrota. Enfurecidos, desafiaram o clube recém-nascido a uma nova partida; e novamente perderam. Esta última derrota marcou o fim do Sport Club Football. A alegria de ver aquele time do povo derrotar os seus adversários levou seus primeiros torcedores – não somente torcedores, mas familiares e amigos que, junto dos garotos, tinham lutado pelo uniforme, bolas, bandeiras, campo; enfim, eram o próprio clube – ao êxtase, ao delírio. Tais êxtase e delírio, mais que de um casual sentimento futebolístico, provinham da experiência de inconfidência, do enfrentamento dos opressores, da luta pela liberdade, da afirmação de uma identidade.

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Foto: Gabriel Castro

Desde o seu nascimento, o Atlético é o time dos inconfidentes. Essa tradição é passada de geração a geração. Não à toa é chamado de Galo. O espírito de luta; a valentia dessa ave disposta a dar sua vida defendendo o terreno contra o invasor; a admiração pelo seu canto anunciador da luz que põe fim a uma noite de angústia; o peito estufado, orgulhoso da sua raça – tudo isso é inerente à história do mais tradicional clube de Minas Gerais. São marcantes, dentro e fora de campo, as lutas desse clube contra a corrupção e os desmandos. É impressionante a forma obstinada como o atleticano se nega a curvar a cabeça aos seus opressores.

Na década de 70, por exemplo, auge da ditadura militar, surgiu um garoto vocacionado a fazer gols. Além de brindar o público com jogadas de gênio, Reinaldo tornou-se o maior artilheiro da história do Atlético; o maior artilheiro do Mineirão; o maior artilheiro em clássicos Atlético x Cruzeiro; tem a maior média de gols em todos os campeonatos brasileiros; na opinião de Zico, não fossem suas contusões e final precoce de carreira, Reinaldo seria o jogador brasileiro que mais se aproximaria de Pelé. Pois bem, esse jogador excepcional, em pleno apogeu, passa a comemorar seus gols de uma maneira peculiar: o braço direito erguido e o punho cerrado. Uma casualidade? Talvez a comemoração, ainda que naquele contexto de opressão que envolvia o país, se passasse por um simples ato de marketing pessoal, se o próprio Reinaldo não declarasse a verdade dos fatos: o gesto era, acima de tudo, político socialista, e gritava silenciosamente pelo fim da repressão – ainda que na época, devido à perseguição política, ele atribuísse ao sinal revolucionário apenas uma simpatia pelos Panteras Negras, um partido negro radical dos Estados Unidos. Fato que comprova o teor socialista do gesto de Reinaldo é o de que, na Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina, país que, à época, vivia sob dura repressão militar, o general argentino Jorge Rafael Videla, então presidente do país, pedisse aos organizadores do Mundial que solicitassem à comitiva brasileira e ao próprio Reinaldo a supressão do seu gesto ao comemorar gols na Copa.

Mas podemos atribuir à atitude de um jogador o espírito de todo um clube? Penso que, no caso de Reinaldo, dada a sua importância para o Atlético, sim, podemos. Mas se isso não bastasse, pesa também a atitude da torcida. A Massa Atleticana começa, naquele momento ditatorial, a chamar o jogador, que protestava contra o sistema vigente, de Rei. Aquele que se volta contra os desmandos de um governo opressor, agora, é o seu rei. “Rei, rei, rei, Reinaldo é o nosso rei!” Ora, o reinado do camisa 9 se devia apenas à sua genialidade dentro das quatro linhas? Talvez, mas, latente, pulsando mineiramente, inconfidentemente, lá estava o espírito de oposição do clube a toda a tirania estabelecida.

Necessário é dizer, apesar de sua obviedade, que os que se revoltam contra os poderosos são, invariavelmente, perseguidos. O Atlético é, indubitavelmente, entre os grandes, o clube mais injustiçado do futebol brasileiro. A cúpula política e futebolística do país jamais permitiria ao time que tinha Reinaldo como rei vencer um campeonato nacional. Por isso, em 1977, o Atlético entrou para a história do futebol brasileiro como o único clube a ser vice-campeão invicto. Às vésperas da final, penalizaram Reinaldo por ele ter sido expulso numa partida no início do campeonato, e o suspenderam da partida decisiva. Em 1980, mais uma vez, o Galo chegaria às finais do Campeonato Brasileiro contra o Flamengo, e seria novamente lesado. Tendo ganhado o primeiro jogo por 1 a 0 em Belo Horizonte e estando o jogo de volta empatado por 2 a 2 no Rio, o que dava ao clube mineiro o título de campeão, o árbitro José de Assis Aragão – depois apelidado ironicamente pelos Atleticanos de José de Assis Aramengão – expulsou três jogadores do Atlético (entre eles, Reinaldo), o que possibilitou ao clube carioca a marcação de seu terceiro tento e, consequentemente, o título nacional. No ano seguinte, pela Copa Libertadores da América, num jogo decisivo contra o mesmo Flamengo, foi a vez de o juiz José Roberto Wright expulsar cinco jogadores do Galo (Éder, Reinaldo – novamente –, Palhinha, Chicão e Osmar Guarnelli), encerrando a partida por falta de número mínimo de atletas e dando, assim, a classificação ao Flamengo.

A era Reinaldo passou, a ditadura também; mas a vocação à inconfidência do Galo não mudou, e muito menos a perseguição ao clube por parte daqueles que comandam o futebol. Basta que vejamos os números: antes da fase de pontos corridos, o Atlético foi o clube que mais vezes chegou às semifinais da competição nacional, 14 vezes, e chegou a 4 finais. Entretanto, somente venceu um título na elite do futebol brasileiro, o de 1971. Seria o resultado de uma tão grande incompetência? Seria somente falta de sorte?

O alvoroço estabelecido em Belo Horizonte, que viu seus moradores roucos de tanto gritarem “Galo!” nos dias históricos 24 e 25 de julho de 2013, foi muito mais que a comemoração de um título. Foi a reafirmação de um gigante que grava em definitivo seu nome na história, algo que poderoso algum poderá apagar. A conquista da Taça Libertadores da América sela a vitória de um povo desfavorecido e perseguido, numa luta histórica e centenária entre a arbitrariedade, de um lado, e a inconfidência, a resistência e a superação, de outro.

O que o Atleticano celebra depois do jogo contra o Olímpia é muito mais que um título: é a certeza de que ele, torcedor, ele que esteve junto até o fim, até o caos; ele, Atleticano, que sustentou o clube que as forças opostas queriam fazer cair no esquecimento; que não o abandonou mesmo quando a derrota era tão bem forjada que passava por grande decepção; ele, que encontrou forças para continuar acreditando no seu ideal, hoje tem a certeza de que a liberdade e a justiça, ainda que tardias, precisam ser sonhadas. Alcançá-las é a virada maior.

Ah, Roberto Drummond, Roberto... você, que perguntava “que mistério tem o Atlético”, você já o sabia! E você nos disse qual era o mistério, mas nós não o soubemos decifrá-lo. Antes de perguntar sobre o que é ser Atleticano, você diz:

Se houver uma camisa branca e preta pendurada no varal durante uma tempestade, o Atleticano torce contra o vento.

Aí está, eis a resposta! O que faz o Atleticano, o que o fascina, o que o constitui está intrínseco nessas suas palavras. Primeiro, a camisa branca e preta. Ao destacar o branco e o preto, você quer chamar a nossa atenção para o pendor de cada Atleticano em ser, ele mesmo, um contraste. Sim, o contraste está em nossa alma de Atleticanos, não apenas na camisa; fomos feitos para a luta, para enfrentar o autoritarismo, para discordarmos de tudo o que é corrupção e tirania. Pois bem, essa alma nascida para ser contrastada se coloca contra o vento; não tem medo de mostrar a face aos opositores, ou melhor, de ser, ela mesma, oposição. Sim, Roberto Drummond, o que causa fascínio no Atlético é a sua independência, seu protagonismo. Tu descobriste!

O ditado tão apregoado de que o Galo era o Brasil na Libertadores é preciso ser bem analisado. O país realmente torcia pelo Atlético? Há que se pensar. Nestas terras, o vento continua a soprar para o mesmo lado.

Ao sair do Mineirão naquela noite de glória, uma garoa fina caía do céu. Para que as nossas almas fossem lavadas; ou talvez as gotas fossem as lágrimas de milhões de Atleticanos que já se foram, ansiando por ver esse dia de justiça, que enfim se cumpria. A garoa caía, fina, serena... Mas não ventava. O vento... O vento, finalmente, havia perdido.

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Foto: Moacir Gaspar