A regra é clara, a lei também – O Passe

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08/03/2012 - 20:47

Foto blog 1 - A regra é clara, a lei também - O PasseE aí Nação Alvinegra, meu nome é Bráulio Assis, formado pela Faculdade de Direito Milton Campos, pós-graduando e especialista nos aspectos trabalhistas do Direito Desportivo. Além disso, sou atleticano fanático e colecionador de camisas do Glorioso Clube Atlético Mineiro. Escreverei, quinzenalmente, um artigo que será publicado no maior e melhor blog alvinegro, o Cam1sa Do2e.

Tais artigos, com uma linguagem clara, têm o objetivo de tratar dos assuntos jurídicos que ocorrem no meio do futebol, esclarecendo-os aos torcedores que, em regra, desconhecem a legislação desportiva. Com frequência tentarei abordar as questões jurídicas relativas ao Clube Atlético Mineiro. Vale ressaltar que, ao meu ver, o setor jurídico alvinegro, é o mais competente e preparado do país.

Falarei hoje acerca do tão famoso instituto do “passe”, que mesmo extinto, ainda é citado, não só por torcedores, com também por profissionais renomados.

O futebol surgiu no Brasil no final do século XIX, em 1894. Um jovem anglo-saxão, chamado Charles William Miller, após anos de estudos na Inglaterra, retornou ao Brasil com uma bola de futebol em sua bagagem e junto o amor e entusiasmo pelo novo esporte.

Nos anos que se seguiram, vários jovens brasileiros, ricos, também retornaram e haviam aprendido o futebol que, na Inglaterra, era tratado como uma disciplina específica nas universidades, fazendo parte da formação dos garotos nobres.

Aqui no Brasil, esses jovens encontraram altos funcionários das empresas inglesas que chegavam ao país e, com eles, se reuniram para praticar o novo esporte nos clubes particulares. O esporte era, portanto, vedado aos operários e pessoas de baixa renda, praticado apenas pela alta sociedade.

As empresas começaram a montar times nos quais jogavam os funcionários do “alto escalão”. Porém não havia altos funcionários suficientes para as equipes e, com isso, algumas empresas abriram espaço aos operários que se mostrassem talentosos em campo.

cincunegui 228x300 - A regra é clara, a lei também - O PasseA partir daí, o futebol foi se popularizando e abrindo, cada vez mais, espaço às classes menos favorecidas.

O esporte não era profissionalizado e o Brasil começou a sofrer com o êxodo de seus grandes craques para o exterior, sem qualquer custo, e diante desse problema, em 1932, o América Futebol Clube/RJ passou a assinar contratos com seus atletas com valor da remuneração expressa. No ano seguinte, o Rio de Janeiro adotou o profissionalismo que se espalhou a todo país.

Entretanto, até 1964, não havia qualquer norma que regulamentasse a atividade profissional dos jogadores de futebol. Sete dias antes de ser deposto pelo Golpe Militar, em um de seus últimos atos, o então Presidente João Goulart instituiu o Decreto 53.820/64 que, dentre outras regulamentações, instituiu o “passe”.

O “passe” foi uma adequação à realidade mundial pois, a maioria dos países, principalmente os europeus, já se utilizavam de tal instituto.

Sob o fundamento de que visava restituir tudo aquilo que o clube investiu no atleta, para formação ou contratação, o “passe” era um valor que uma associação cobrava para transferir seu jogador a outra.

O passe dava tamanho poder ao clube que, mesmo com o fim do contrato de trabalho, o atleta não tinha liberdade para se transferir para outro time. Mesmo se o detentor do seu passe não tivesse mais interesse nos seus serviços e nem mesmo quisesse renovar o contrato. Dessa forma, mesmo sem contrato, o jogador ficava, literalmente, preso ao clube detentor de seu passe.

Em 1976, a Lei 6.354, conhecida como “Lei do Passe”, definiu que a relação entre clube e atleta se tratava de relação de emprego. A nova lei descrevia o “passe” como sendo a “importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato de trabalho ou depois de seu término”. A única possibilidade de o jogador se libertar do vínculo, sem anuência do clube, era obtendo o “passe livre” quando completasse 32 (trinta e dois) anos de idade e desde que tivesse prestado serviços ao clube por mais de 10 (dez) anos.

Vale observar que muitos doutrinadores faziam uma analogia do “passe” com a “servidão medieval”, pois os jogadores não podiam escolher, livremente, para quem vender sua força de trabalho.

De toda sorte, o instituto do “passe” estava perdendo força em todo mundo e, em 1991, foi praticamente extinto nos países europeus diante do “Caso Bosman”. Jean- Mark Bosman era atleta do clube Royal Football Club, da Bélgica. Ao fim do contrato, o clube belga propôs uma renovação de contrato com Bosman, reduzindo seu salário em 80%. Nesse período, Bosman recebeu uma boa proposta do clube francês Dunkerque e não aceitou renovar o contrato com o clube Royal. Em represália, o clube belga fixou, junto à confederação belga, um valor astronômico para o passe do atleta, impossibilitando, assim, qualquer chance de transferência para a França.

Bosman recorreu à justiça desportiva onde foi derrotado em todas as instâncias. Não satisfeito, recorreu à Justiça Comum e, após cinco anos, obteve a vitória no Tribunal de Luxemburgo. O tribunal gerou uma determinação que foi denominada como “Lei Bosman (“Loi Bosman”), extinguindo o “passe” em todos os 15 países que integravam a União Europeia. Em pouco tempo, todos os países que integravam a UEFA (União das Associações Europeias de Futebol) aderiram à “Lei Bosman”.

No Brasil, várias tentativas de abolir o “passe” foram feitas, como a Lei nº 8.672/93, conhecida como “Lei Zico”. Entretanto, o antiquado e inconstitucional instituto do “passe” só foi, de fato, extinto, em março de 1998, com a aprovação da Lei nº 9.615, denominada “Lei Pelé”.

Verifica-se, pois, que a “Lei do Passe” surgiu para resguardar os investimentos feitos pelo clube na formação e aquisição de atletas, coibindo o aliciamento de jogadores.    Na época de sua criação, a lei foi muito bem aceita, pois de certa forma estruturou, financeiramente, os clubes e organizou o futebol. Entretanto, com o passar do tempo e a evolução social e jurídica, o “passe” tornou-se um instituto arcaico que feria claramente princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, impedindo o atleta de prestar serviços para quem bem entendesse, resultando com que muitos doutrinadores fizessem uma analogia com a escravidão.

Com o advento da “Lei Pelé” e a consequente extinção do passe, muitos dirigentes ficaram preocupados, imaginando os prejuízos financeiros que os clubes teriam com o fim do “passe”.

De toda sorte, a incerteza que pairava sobre os dirigentes foi eliminada com o art. 28, II, e §3º da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), complementado pelas Leis 9.981/00 e 10.672/03, que instituiu a “cláusula penal” que, de certo modo, substituiu o “passe”, tendo um caráter indenizatório, que resguarda o clube do investimento feito no atleta.

1955 atlético 2x1 flamengo 300x225 - A regra é clara, a lei também - O PasseA cláusula penal era devida do atleta ao clube, em caso de rescisão unilateral do contrato trabalho. Se o caso fosse de rescisão por parte do clube empregador, o atleta faria jus a 50% (cinqüenta por cento) do valor total que receberia até o final do contrato de trabalho, nos termos da CLT.

Atualmente, com a Lei 12.395/11, que alterou profundamente a “Lei Pelé”, a “cláusula penal” passou a se chamar “cláusula indenizatória desportiva”, devida do atleta ao clube, e a “cláusula compensatória desportiva”, devida do clube ao atleta em caso de rescisão antecipada, respeitando, agora, o mínimo de 100% (cem por cento) dos salários mensais a que teria direito o atleta até o termino do contrato.

Verifica-se, pois, que atualmente, o clube que quiser contratar um atleta, deve pagar o valor da “cláusula indenizatória desportiva”, estipulada no contrato de trabalho, obrigando, assim, o clube empregador a liberar o jogador, transferindo os direitos econômicos e federativos. Entretanto, nada impede que o clube empregador aceite um valor inferior ao estipulado na cláusula para liberar o atleta.

Ao nosso ver, a extinção do passe foi benéfica ao atleta e ao clube pois, como trabalhador, o atleta vende seu trabalho para quem entender, quando quiser. Já o clube não fica prejudicado com a transferência do jogador, pois têm direito ao recebimento de justa indenização. Entretanto, a extinção do passe culminou com o fim da “identidade” formada entre clube e jogador, o famoso “amor à camisa”. É por isso que, atualmente, não surgem grandes ídolos que permanecem durante anos nos clubes, como Reinaldo, João Leite e outros craques declaradamente atleticanos.

Esse artigo visou esclarecer aos amantes do futebol que atualmente não existe mais o instituto do “passe” que é muito falado, equivocadamente.

Nos próximos artigos falaremos de assuntos interessantes como o contrato de aprendizagem do atleta da base, o primeiro contrato profissional do jovem jogador, os meios de extinção do contrato, os bichos, as luvas, período de concentração e pré- temporada, dentre outros temas, sempre abordando casos concretos.

Espero que tenham gostado. Estou à disposição para eventuais dúvidas.

Saudações Alvinegras!

Bráulio Assis

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Imagens: Internet

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