Paciência de Jô

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24/07/2020 - 18:34

Nos sete anos da conquista da Libertadores, porque o Galo demorou tanto para finalmente alcançar a glória eterna?; Fé testada e retrospecto no torneio continental não favoreceram o clube alvinegro na competição

Onde você estava em julho de 2013? Como estava a sua vida e quais eram seus planos para aquele ano? Um exercício mental para ser feito ao longo dessa leitura e um convite para viajar de volta ao passado. Mas, se assim como eu, você torce para o Galo, a única resposta possível para essa pergunta é esperar que o Clube Atlético Mineiro, na figura do nosso "Capitão América", Réver, erguesse a taça da Libertadores. E foi exatamente isto que aconteceu.

Para chegar até aí, foi uma longa jornada, digna de paciência muito estimulada e um credo ainda mais efervescente. As linhas a seguir não são apenas a narrativa da conquista, mas uma cooperação de sentimentos e sincronia de atleticanidade, entre outras pessoas que viveram aqueles dias.

O conceito de tempo é tão relativo quanto nossos gostos mais singulares. O relógio por várias vezes é vilão, mas também pode ser herói. No dia 24 de julho de 2013, o Atlético encarava alguns adversários além do Olímpia. A ansiedade. A pressão. A necessidade de reverter outro resultado, depois de derrota por 2 x 0 em Assunção, no Paraguai e, 90 minutos para construir outro placar difícil. Difícil, mas não impossível. Afinal, mais do que qualquer outro clube o Galo aprendeu como ninguém a escapar dos maus lençóis que tanto o atormentaram ao longo de sua história e até fez um locutor criar o bordão "Não é milagre. É atlético Mineiro". O time que arrancou do torcedor, o sonoro cântico de "EU ACREDITO!". Depois de tudo. Não tinha como ser diferente.

A agonia começou muito antes do apito do juiz, para a redonda rolar no Mineirão. O corre corre era fora do estádio, dias antes, para conseguir um ingresso, que girava entre R$100 a R$500. Muita grana, ou valor irrisório para quem teria a oportunidade de ver a história sendo feita. Eu mesmo lembro que semanas antes, havia rescindido o contrato com a empresa onde trabalhava e queria porque queria, pegar o dinheiro do acerto e desembestar para Belo Horizonte, mas infelizmente, ou prudentemente, financeiramente falando, não o fiz.

Restava procurar um lugar para assistir o jogo e o destino foi a casa do meu padrinho, Wilson. Deus o abençoe. Ele e ao cachorro do vizinho, que mora no prédio da frente e sempre nos antecipa lances e gols, quando late. Para quem tem delay entre TV fechada, aberta e as rádios, essa força canina era apenas mais um ingrediente. Um, de tantos, uma vez que o misticismo e a superstição nos abraçava forte.

Essa veia atleticana que todos nós temos, floresce e se fortalece de forma particular para cada um(a). Em mim, foi pela família por parte de pai. Reforçado por tios e primos. Desde 2006, naquele ano inenarrável para gente, acostumei a assistir jogos na casa do irmão do meu pai e ainda é um ritual até hoje. Assim foi naquela noite. Depois de o aniversário de outra tia, subimos pra casa do padrinho, ele, meus dois primos e eu. Meu pai foi pra casa dele – e ainda sim depois ainda foi presenteado com minha camisa que assisti a epopeia.

Chegando no Bom Pastor, bairro aqui de Divinópolis, por volta das 20h30, pouco antes de uma hora pro bendito jogo começar. E bota bento nisso. Toda e qualquer crendice ia valer mais do que nunca pra que o Segundo Sol atleticano – menção honrosa a Nando Reis e Cássia Eller, surgisse mesmo na escuridão do céu de inverno daquele julho de 2013. Escuridão que estava para ter enfim, um fim e encerrar o jejum de títulos expressivos desde 71, naquele inesquecível cabeceio do Dadá após lançamento do Humberto Ramos.

A bola rolou e faltou unha pra roer. Todos já estávamos aflitos. O começo do jogo colocou muitos mais velhos a pensar em 1980 e 81, mas principalmente em 80, quando o Galo foi operado pelo Sr. José Roberto Wright. Algoz e nome intragável pra quem conhece bem a nossa história. Não fosse ele, já teríamos antecedido em décadas, o objetivo, 33 anos mais precisamente. Idade de Cristo. Mais um agente religioso pra nos acompanhar na etapa complementar, e nos abençoar e já que nos 45 minutos iniciais ficamos n... Olha o cruzamento do Rosinei, falhou Pitoni no corte e... é GOOOOOOOL. João da Silva. A PACIÊNCIA DE JÔ, para abrir o placar, no início do segundo tempo. Tudo que o Galo precisava. Sobrevida pro período final.

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Foto: Reprodução/Atlético

Só que como pro Galo tudo é sofrido, como já diria o Mário Henrique Caixa, ainda foi preciso angustiar por mais alguns instantes. Teve bola na trave. Chute no travessão. Escorregão de jogador paraguaio depois de driblar o Victor e ter a baliza aberta pela frente. Expulsão de beque deles. Não tinha como. Era coisa de outro plano. Feita pra ser. Trajetória singular, escrita a duras penas. Nem o roteirista mais otimista poderia imaginar o que ainda estava por vir.

Débora Cunha, conterrânea da cidade do Divino, tinha 14 anos na época e naquele dia foi dormir na casa da amiga – crüzeirense, dela. O que hoje não faz o menor sentido, de acordo com ela. “Essa amiga minha não assistia futebol e era cruzeirense. Eu estava vendo, mesmo com ela dormindo. Tava angustiada, apreensiva, porque eu choro vendo jogo.” relatou.

O que a jovem atleticana não sabia é que juntamente com ela, 8 milhões de outras pessoas estavam com sentimento similar. Em sincronia. Pra quem já venceu o Boca Juniors na Argentina em 99, mas tinha alcançado apenas o 5° lugar em 78 e 6° em 2000 com Guilherme, Marques e companhia, não dava mais pra adiar. O grito acumulado tinha que sair. E saiu, de novo, sofrido.

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Foto: Reprodução/Atlético

Aos 41 minutos do segundo tempo, com o público em tempo de ter um piripaque, após bola jogada na área pelo Júnior César, o Leonardo Silva tentou alcançar, mas sofreu carga e foi ao chão. A torcida vibrou uníssona pelo pênalti, que não foi marcado. A torre mais goleadora tinha um plano maior por vir. Depois que a bola foi para direita, saiu dos pés de Bernard, o novo cruzamento, até que... Tic-tac. Tic-tac. Tic... Aqui, para qualquer pessoa que assistiu aquela partida, o tempo pareceu ter parado. Se a física puder entender e fosse possível voltar naquele exato instante, iriam se questionar como o zagueiro pulou tão alto e porquê depois de testar a bola, ela demorou uma eternidade pra cair dentro do barbante. Intervalo de quase três segundos entre o cabeceio e a redonda ultrapassar a linha da meta adversária. Era o 2 x 0 para ir para prorrogação.

“Eu queria gritar, mas não podia. Ficou entalado na garganta. Minha mãe me ligou e ficamos nos falando por telefone. No outro dia nos encontramos e ficamos gritando uma com a outra. Não acreditávamos no que tinha acontecido.” contou Débora.

Mas a saga ainda tinha mais 30 minutos de melão pra rolar. Com os jogadores exaustos, foram dois tempos mais de raça, do que de aptidão física. Por vezes, nenhuma das duas equipes queria se arriscar e ceder uma chance rota que seja, para que a outra tivesse vantagem. Quem iria ter mais sorte, ou mais competência pra tirar o clube da bacia das almas? O Rei de Copas, vizinho brasileiro já tinha três conquistas. Por mais que os torcedores rivais secassem e os próprios paraguaios quisessem, eles poderiam ficar na fila um pouco mais, diferente da massa atleticana, que talvez, mesmo se o clube durar para todo infinito e jamais vencesse uma competição, estaria ali, sem arredar o pé, porque o que alimentava a alma alvinegra era e ainda é a paixão descomunal, convertido em amor incondicional.

Passada a prorrogação, o duelo caminhava para seu capítulo final. E aqui, novamente passava pela mente: hoje, de quem será a estrela a brilhar. Ronaldinho Gaúcho? Jô? Guilherme? Alecsandro? Leonardo Silva? Todos eles deixaram suas contribuições, além de todos os demais daquele elenco. A camisa com a imagem de Nossa Senhora estampada no corpo de Alex Stival, o Cuca, não poderia refletir mais, o símbolo de fé, que a torcida se apegava.

Por que que tem que ser tão sofrido?

Marcell Mesquita, também de Divinópolis, mas que mora na capital há oito anos, foi para o jogo com o encarregado da empresa onde trabalhava, junto de mais duas outras pessoas. Eles conseguiram o ingresso mais quisto dos últimos tempos e estavam lá, entre as 58.620 pessoas que renderam aos cofres R$14.176.146,00. Maior renda em bilheteria da história do Mineirão.

O grupo estava muito empolgado com a possibilidade do placar ser virado. “Sabíamos que a vitória poderia vir. Por dois ou até mais. O time inspirava muito confiança.” assentiu. Porém para chegar ao Estádio Governador Magalhães Pinto, eles tiveram que sair por volta das 17h30 e encarar uma Carlos Luz tomada por um trânsito ensandecido, enquanto ouviam os bastidores do jogo na Itatiaia, pela rádio.

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Da esquerda para direita, Marcell Mesquita, ao lado de Marcos Haroldo, Pedro Xambre e Marco Xambre, depois de duas horas de trânsito agitado para chegar ao Mineirão | Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Marcell e o pessoal gastaram cerca de duas horas pelas ruas, até conseguirem chegar próximo às dependências do local, segundo ele. A alvorada no exterior do Mineirão estava tomada, do famoso Bar do Peixe até os concretos que edificam o Gigante da Pampulha.

De acordo com Marcell, eles conseguiram entrar no estádio em cima da hora, a ponto deles não conseguirem ter aproveitado os minutos pré partida já dentro do local. O que era esperança e euforia nos minutos iniciais, acabaram por se tornar desespero e apreensão, ao passo que o placar no painel não saia do lugar.

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O torcedor atleticano Marcell Mesquita, comemora o título inédito da Libertadores, após a incrível vitória atleticana nos pênaltis, contra o Olímpia | Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Mesquita conta que durante o intervalo, ele trocou de rádio e passou a ouvir pela 98FC, pois conforme relatou, por mais que não tivesse conhecimento de como era transmissão, ele foi cativado pelas famosas paródias da emissora e isso ajudava a se familiarizar e descontrair.

Se o botão de switch empurrou o alvinegro, não se sabe, mas após sintonizar na estação, logo saiu o gol de Jô. “Até hoje escuto a 98 por causa dessa lembrança. Me marcou muito e passei a gostar do estilo da narração deles.”, conta. Com o fone no ouvido e em sinergia aos demais, também atribui as forças misteriosas a queda de Ferreira, depois de deixar o goleiro no chão e ter o gol livre “desimpedido”. Veio o alívio cômico. “Estávamos mesmo predestinados. Não só eu acreditava. Todos acreditávamos.”, salientou.

Acrescenta. “No gol do Leonardo Silva eu não me lembro muito bem, porque a gente entra numa frenesia alucinada e sai de si. É uma sensação de pertencimento e coletividade enorme, querendo que algo aconteça e aconteceu.”, relembrou.

A emoção eternizada

Da prorrogação adiante, até chegar nas famigeradas cobranças de pênalti, que como virou clichê. “Se não é o seu time ali, você faz até pipoca pra assistir, porquê pênalti dos outros é bom demais...”. Assim enfatizam os comentaristas e secadores. O divinopolitano teve a ideia de gravar o lance final, que sacramentou a vitória épica do Galo, depois que a cobrança do Jimenez explodiu no travessão, pra delírio da galera, que via o Atlético Mineiro se consagrar com a glória eterna da Libertadores pela primeira vez. Confira o vídeo a seguir.

Com pouco mais de 2 mil likes e quase 200 mil visualizações, Marcell disse que pensou em registrar o momento, porque durante a campanha alvinegra, muitos outros vídeos viralizar na internet, como o de um torcedor após ver a famosa defesa com os pés, contra o Tijuana e outros, até mesmo da torcida rival.

No vídeo, o som da comemoração é ensurdecedor e as reações são as mais variadas. Prantos. Gritos. Risadas. Abraços. Beijos. Impossível não se sentir nostálgico e até mesmo lembrar das aglomerações (saudades, né?).

O fim é o começo e o começo é o fim

Parágrafos acima voltamos em janelas atemporais, naquela data tão marcante. Sete anos se passaram, só em uma oportunidade voltamos a conquistar um título continental, na Recopa contra o Lanús. De lá para cá, o Galo foi vice Brasileiro em 2015 e busca voltar a estrada das conquistas.

O torcedor se (mal) acostumou com as grandes conquistas, mas a verdade é que uma parcela expressiva da massa alvinegra sabe que tempos muito piores já se passaram, como foram 2004-2006, a flopada Selegalo e as décadas de 70 e 80, quando se tinha talentos expressivos, mas as equipes atleticanas morreram na praia.

Aprendemos a gostar de vencer. Vencer. Vencer. Virou mesmo o nosso ideal. Os anos se passam, os ciclos se encerram e iniciam novamente. Que nossos filhos, filhas, netos, netas, sobrinhos e sobrinhas, possam vislumbrar mais e mais taças, erguidas não só no Mineirão e Independência, mas na nossa futura Arena MRV, daqui dois anos e meio. Afinal, como cantado em Closing Time, “Todo novo começo, vem do início de outro fim(...)”.